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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A pausa no tempo.

Anos após o grande trauma, ele refletia durante a madrugada.

Não sabia qual caminho escolher. Pensou, então, que podia escolher não escolher entre os caminhos, mas caminhar entre as escolhas, sem que tivesse que desfazer-se de uma ou de outra. Percebia que se, de alguma forma, tinha razão aquele seu velho antepassado que, não muito tempo atrás, lhe dissera ser o mundo um imenso jardim, lugar aonde temos de escolher nossos caminhos - que, por sua vez, nos faziam trilhar a senda de novas escolhas, sempre anteriormente determinadas -, este não levara em conta um fato simples, uma variável discreta, quase humilde de tão despretensiosa.

Pensando nas escolhas que havia feito, ele se descobria não tendo feito escolha alguma. Dava-se conta de que, até então, encarara os problemas como situações decisórias, quando não devera tê-lo assim feito. Antes teria sido mais feliz se à necessidade tivesse respondido com a questão simples, a de saber e (se) questionar se havia mesmo que escolher entre as opções que se apresentavam. Carente do agir, havia se compelido a aceitar o problema ao invés de tê-lo feito sentir o gosto de sua própria toxina. Agora, não. Diante da revelação quase patética de que as escolhas podem acelerar demasiada e brutalmente a vida, recusava-se a fazê-las .

De agora em diante, agiria sem escolher. Mais ainda, não escolheria a escolha do agir, pois era este passo a derradeira rendição que, meio que magicamente, o prendia à cadeia de atos e palavras, aquela mesma que, de forma acelerada, progressivamente o arrastava em direção ao futuro tal como num quadro que nunca realmente vira, mas de que já lera (e muito) a respeito.

Walter, seu grande amigo e há muito caído, afinal, tinha razão: era a progressão, o caminhar para frente obstinadamente que o angustiava. Esforçava-se por perceber as possibilidades, os perigos iminentes e os pontos onde se apoiar. Sua análise das situações, entretanto, não conseguia divisar o que poderia libertá-lo. Não podia compreender e nem sequer entrever alternativas para além do reino da necessidade.

Naquele momento, no entanto, ele enxergara algo. Resplandecente e fugaz como um raio que corta o céu e o terra sem ser notado, sua percepção momentânea o apavorou, pois, por um instante, lhe pareceu que ninguém no mundo poderia ter visto aquele raio a não ser ele – o sono satirizava suas divagações inutéis e melancólicas? -, nem mesmo aquele que ele mesmo tinha sido até então. Apenas ele, singularizado ao extremo pela conjunção dos tempos, poderia. Como podia ter sido ingênuo a esse ponto? - era o quê ele se perguntava. Bastaria que ele desistisse de agir, de se mover pra frente, buscando sempre uma meta, um ideal, enfim, que ele desistisse da vida enquanto encadeamentos necessários e inevitáveis, e a angústia terminaria.

Cessou completamente aquela loucura, desistiu do futuro em nome de um presente eterno que o permitisse trabalhar as reminiscências, infinitas desde o primeiro momento. Viu-se, então, em meio a um oceano de coisas por fazer e longe da terra firme em que sempre se achara e onde estivera seguro... teve medo. Mas pela primeira vez percebeu, não sem certa alegria eufórica, que se libertara. De um medo do dever, de dever devir, tinha se deixado dominar por outro: o medo do labirinto que a ele se apresentava por escolha pura, em suma a única verdadeira, pois necessariamente liberta dos grilhões da sua própria reprodução infinita e indeterminadamente deslocada de si própria pelo movimento do ponteiro.

Poderia ser quem quisesse: o pai amoroso e protetor, o filho querido e mimado, o amante apaixonado e devotado, o profissional dedicado e reconhecido e, mesmo – e percebendo isso já começava a gostar um pouco mais da imensidão labírintica em que se metera – poderia ser tudo isso em tempos diferentes. Pausar o curso dos acontecimentos lhe havia facultado um novo campo de percepção do tempo e esse poder quase sobrenatural o deixara inebriado.


Súbito, todavia, atravessou-lhe o corpo a dor de uma cicatrização artificialmente produzida, forjada como aço, pela cauterização de uma ferida que ele não se dera conta de estar sequer aberta. A dor repentina, mas nem de longe surpreendente, tornou-se real. Foi ao chão, tendo instantaneamente se dado conta de tudo. Aquilo que sentia era o orgulho e este tornara-o vulnerável ao tempo de novo.

Descuidara-se, apenas por um momento, e a soberba do feito alcançado alertara a Chronos, que tendo sido posto em questão por menos de segundo – ou talvez por milênios, é impossível saber -, tomava conhecimento de sua existência errante fora do fluxo. O sentimento da soberba, esse pecado capital agora plenamente justificado como poderosa conjuração para manter os homens ainda distantes da continuação do sonho de Prometeu, havia denunciado suas pretensões: ao orgulhar-se de si mesmo e de sua obra havia feito girar novamente a agulha do relógio da vida, à qual passivamente retornava.

Triste? Não. Agora havia uma confirmação e um alento. Se era impossível vir a ser o ser que  por sua própria cobrança ele considerava um dever, descortinara a maior riqueza daquela situação incômoda à qual humanamente todos pertencemos. Nela podia pensar, pôr em movimento o tempo e, assim, encerrar a tarefa que dentro do labirinto ele vislumbrara ser possível. Mas como?


Ele diria ainda não saber, mas agora estava tranquilo por ter à disposição novamente o tempo, matéria para construção de histórias várias. Curiosamente sua ausência despertara ele para o antídoto que aquele veneno - e que veneno maior que o tempo, aquele que com maiores sutilezas sádicas e perfeita coordenação conduz o intoxicado ao fim? - possuía: a vida vivida no contínuo afastamento de tudo o quê é necessário.

Ao fim, a própria morte, essa necessidade última a qual nenhum de nós pode fugir, perderia seu valor enquanto tal, transcorreria enquanto ato de rebeldia e não de sujeição.

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